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HISTÓRIA DE VISITANTE

Na cidade de Itacarambi os espaços de sociabilidade são partilhados com comunicação cultural


 

Na cidade de Itacarambi os espaços de sociabilidade são partilhados com comunicação cultural

 

A arte rupestre do Vale do Peruaçu é formada por dezenas de milhares de figuras pintadas ou gravadas nos paredões de rocha

A pintura da louça produzida na Olaria esta associada à tradição das culturas indígenas desde épocas remotas

Desenhos e esculturas de formas casuais, representativas, objetivas e evocativas que remetem às expressões remotas dos que ali habitaram

 

 

 

No itinerário urbano, praças, muros, meios-fios de calçadas sugere-nos como espaço especial destinado a armazenar e transmitir mensagens

 

 

Espaços temáticos na cidade com intuito de reconstituição histórica

 

 

 

Carrancas gigantes, esculpidas em madeira e concreto, como portais que emolduram a Praça da Água Viva

 

Carrancas gigantes, esculpidas em madeira e concreto, como portais que emolduram a Praça da Água Viva

 Cada cidade é única, pelo seu lugar propriamente dito, marcado por uma trama de ruas e caminhos, edificações, enfim, por espaços de sociabilidade que são partilhados por seus moradores e visitantes, com modos de vida e costumes diferenciados. Jardins, arborização, materiais e sistemas construtivos, paisagem natural, entre outros aspectos, caracterizam as cidades, o que distingue cada território urbano em relação a outro. Quando se procura interpretar as origens de uma cidade, podem-se buscar os seus testemunhos de filiações culturais e sucessões temporais em remanescentes físicos. As pinturas rupestres e demais representações simbólicas contam como o mundo natural é percebido em cada cultura. Mumford (2) indica que se quisermos identificar a cidade, devemos seguir a trilha para trás, partindo das mais complexas estruturas e funções urbanas conhecidas, para os seus componentes originários. Antes da cidade, houve a pequena povoação, antes da aldeia o acampamento, o esconderijo, a caverna, o monte de pedras.

Aqui, apresentamos a cidade de Itacarambi, localizada no alto-médio do curso do rio São Francisco, no vale do rio Peruaçu, norte de Minas Gerais. (Figuras 1, 2 ,3) Nas suas origens, ela está vinculada à exploração da região através das “entradas” e “bandeiras” que abriram caminhos, estabeleceram pontos de parada, fundaram pequenos aglomerados como apropriações territoriais que progressivamente iriam permitir a penetração e a colonização do Estado. Estas penetrações foram palco de muitas batalhas e perseguição aos nativos. Este processo remonta à segunda metade do século XVII. Anteriormente a este processo – que resultou no domínio das terras, na expulsão e no escravismo dos índios xacriabá que ali já habitavam – o sertão mineiro recebera incursões para conhecimento do rio São Francisco determinadas por D. João III ao governador-geral Tomé de Souza ainda em 1553. Este outorgou a Francisco Bruza de Espinosa e ao missionário padre João de Aspilcueta Navarro a incumbência de explorar o rio e a “serra resplandecente” após terem notícias da existência de aldeamentos indígenas na região. No ano seguinte (1554), a expedição teria percorrido 350 léguas, adentrado Minas Gerais pelo rio Jequitinhonha, alcançando daí o rio São Francisco.

Há estudos relevantes de arqueologia que evidenciam indícios remotíssimos da ocupação humana na região; descobriu-se, por exemplo, que as camadas mais profundas do abrigo do Boquete, uma lapa existente no município de Januária, datam de mais de 12 mil anos o que é comprovado por vestígios de instrumentos e restos alimentares, fogueiras e pigmentos preparados. Há prova de realização de arte rupestre, a partir de 9.000 anos. Para Prous, (3) “os habitantes do Vale do Peruaçu se assemelhavam fisicamente aos modernos índios.” Neste sentido, Itacarambi abriga parte de um complexo arqueológico considerado como um dos mais importantes cenários subterrâneos do Brasil, de interesse de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Prous destaca ainda que:

“...a arte rupestre do Vale do Peruaçu é formada por dezenas de milhares de figuras pintadas ou gravadas nos paredões de rocha. [...] Foi possível determinar, em certos sítios, a existência de até oito momentos de decoração (cada “momento” podendo ter durado vários séculos ou até   milênios), cada um caracterizado por certos temas, certas formas de representação e pelo uso preferencial de certas cores”. (Figura 4)

Ricardo Lima, (4) em seu estudo sobre a identidade dos moradores do Candeal, revela que a sociedade local, incluindo não apenas os ceramistas mas também outros moradores do próprio Candeal, de Cônego Marinho, sede do município, e da área circunvizinha, inclusive Januária, costuma associar a pintura da louça produzida na Olaria à tradição das culturas indígenas desde épocas remotas (Figura 5); para este autor “os índios não desapareceram e estão presentes nos tempos atuais, representados pelos xacriabá.” Esta presença dos primeiros moradores pode ser constatada na urbanização atual de Itacarambi. Como cidade herdeira de tradições, na sua comunicação urbana percebemos desenhos e esculturas de formas casuais, representativas, objetivas e evocativas que remetem às expressões remotas dos que ali habitaram (Figuras 6,7,8,9). Assim, ao longo do itinerário urbano, praças, muros, meios-fios de calçadas, entre outros aspectos, revelam um cenário original que Mumford sugere-nos como espaço especial destinado a armazenar e transmitir mensagens. (Figuras 10,11,12).

A recriação dos espaços temáticos na cidade atual teve o intuito de operar uma reconstituição histórica, por assim dizer, e dar legitimidade ao diferencial da cidade em seu território, o que é representado nos traços dos índios, caboclos e pescadores. Assim, esta construção de espaços temáticos em Itacarambi foi realizada ao longo de 18 anos de gestão da administração municipal (5). Além desta reconstituição, outro objetivo refere-se ao interesse turístico, na medida em que esta ação poderia trazer resultados para o desenvolvimento da economia local, tendo o engajamento da população com o seu espaço público e tomado pela sociedade enquanto parte da sua cultura (Figuras 13,14,15). A incorporação de esculturas e desenhos no espaço urbano causou, no primeiro momento, segundo relatos dos moradores, reações negativas – a iniciativa da administração municipal não foi reconhecida como um instrumento de valorização e de apropriação dos testemunhos de um patrimônio cultural. Nos dias atuais os moradores se posicionam ora como guardiões, ora como desprendidos dos seus bens culturais. Esta noção de sentido de lugar está categorizada na 2ª Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, (6) de 1972, que concede a paisagem cultural uma identidade territorial, pois estão ali reunidos os ciclos naturais, os recursos materiais e imateriais.

Gadotti (7) ensina nos pressupostos pedagógicos que, para potencializar o que já existe, não basta a emoção estética – “a educação é importante para o desenvolvimento cultural porque ninguém valoriza o que não conhece.” A afirmação de identidades, de diferenciações, de conteúdos valorativos é vista no argumento de Lages, (8) que percebe nas indicações geográficas referências afetivas porque: “[...] criam nexos com os territórios, com as pessoas, com a tipicidade de cada local.(...) porque as pessoas se interessam cada vez mais por conteúdo simbólico e material, densos em emoções e experiências.”

Para referenciar sua localização às suas margens no rio São Francisco, a cidade recorre a outro meio de salvaguarda da cultura local – as carrancas gigantes, esculpidas em madeira e concreto, como portais que emolduram a Praça da Água Viva (Figuras 16,17,18).  Este símbolo da navegação do São Francisco nasceu para ficar na proa das embarcações, como adorno e proteção dos barqueiros contra os maus espíritos. O naturalista Burton (9) em viagem de pesquisa e reconhecimento do território relatou no ano de 1867 suas impressões dos barranqueiros: “as superstições dos barqueiros são tão numerosas [...] acreditam na aparição dos esqueletos. [...] Contam casos curiosos a respeito do “cavalo d’água” e outros animais fabulosos”.

Os costumes, as práticas, a história e a tradição, enfim, o patrimônio é visto por estudiosos como um serviço da chamada “Era do Conhecimento,” em que a cultura assume centralidade. Há, ali, nas praças, nos canteiros das ruas de Itacarambi, entre a cidade reurbanizada e o rio São Francisco, uma subjetividade partilhada. Percorrer os trechos marcados por estas manifestações desperta reações diversas e um forte apelo no campo da memória. Memória revelada por desenhos, cores e formas, enfim, por recriações que nos remetem a outros tempos, sem nos deixar perder o sentido do presente. Recriações que traduzem de maneira expressiva o sentido do lugar, com as suas marcas específicas, como valores culturais expressos no espaço, nos espaços de diálogos propriamente ditos, no ir-e-vir do cotidiano de visitantes e moradores. A preservação destas marcas aliadas às outras marcas que caracterizam a cidade, ou seja, o próprio cenário urbano de Itacarambi, nos parece essencial. Entre o lugar demarcado e reconhecido, constroem-se espaços de diálogos.

 OS VAPORES E AS HISTORIAS DE ITACARAMBI

É um tanto intangível para as gerações mais novas imaginar porque o Velho Francisco foi o Rio da Integração Nacional. Rio de Janeiro era a capital, e o Nordeste era o Brasil a que ela se integrava. Mas isso fica ainda mais claro quando ouvimos as histórias de quem viveu essa época exatamente no meio do caminho, entre Pirapora – MG e Juazeiro – BA, no porto de Itacarambi – MG.

Seo Jaime Pacheco, 76 anos, 40 pescando no São Francisco, lembra-se muito bem da época em que 12 vapores faziam o trajeto, trazendo riqueza e comércio para a região. “Na época da guerra os vapores foram a salvação”, lembra-se orgulhoso. “Os expedicionários brasileiros subiram dentro dos vapores para embarcar para a Europa, evitando serem torpedeados pelo inimigo”, lembra-se orgulhoso.

“Durante a guerra os vapores foram a salvação”, lembra-se seo Jaime. Foto: Marcello Larcher

Dona Floripes Leles de França Andrada, 75 anos, foi ainda menina para Itacarambi, aos 13 anos partiu de sua Bahia natal no Barão de Cotegipe, um dos vapores mais famosos. Em Minas cresceu, casou-se, trabalhou por 25 anos no grupo escolar e criou seis filhos. Aliás, fica difícil saber o que é Minas e o que é Bahia, tudo fica um sertão só.

Dona Floripes, veio da Bahia mas considera-se mineira. Foto: Marcello Larcher

Outro que veio da Bahia foi seo Salustiel Leão de Sousa, 79 anos. Ele se ressente dos vapores ancorados em Juazeiro e Pirapora e da falta de peixes. Ele diz que antes das barragens o rio corria mais, e que assim parado ele come as margens, mata as árvores e afasta os peixes. Para ele a solução só Deus pode dar, pois são as chuvas que trazem as cheias. Mal sabe seu Salatiel que, com Três Marias e Sobradinho, as cheias só podem vir por obra das comportas.

Para seo Salustiel, só um milagre pode salvar o rio. Foto: Marcello Larcher.(

(Autor: Equipe Brasil Oeste e Marcello Larcher)

 .(HISTÓRIA CONTADA POR EDUARDO BARRO DE BH).